Em suma, entende-se por domínio público pagante ou remunerado quando a legislação estabelece a obrigação de pagamento pela exploração de obras em domínio público, embora não seja necessário solicitar autorização
Valemo-nos aqui do conceito da Prof. Dr.ª Delia Lipszyc, doutrinadora argentina e aguerrida defensora do instituto. Tal escolha doutrinária não é em vão: primeiro lugar pela proximidade fronteiriça entre Brasil e Argentina e, sobremaneira, pela atualidade do sistema argentino que mantém o domínio público pagante vigente.
Ademais, o respectivo pagamento é em regra realizado perante autoridade ou organismo público, revertida para financiar instituições em prol dos autores ou para fomentar programas culturais.
O domínio público pagante foi discutido durante muitas vezes ao longo da História. Sua primeira célebre defesa teria sido entoada pelo gênio literário Victor Hugo no Congresso Internacional de Literatura realizado de 1878, em Paris. O sistema proposto por Victor Hugo defendia direitos patrimoniais e pessoais absolutos durante a vida do autor. Após a morte, apoiava a liberdade de edição por qualquer interessado, desde que fosse pago um valor aos herdeiros, eternamente. Entretanto, apesar de servir sempre como alicerce daqueles que defendem o domínio público pagante, Victor Hugo fez considerações sobre a necessidade de sempre observar o direito da sociedade de acessar as obras de um autor falecido, bem como o pagamento de tal valor a perpetuidade deveria ser moderado, tendo em vista que o interesse público é sempre superior.
Posteriormente o assunto foi suscitado muitas vezes em muitos países, encontrou defensores europeus num passado não tão distante, tendo sido instituído em Portugal pela Lei n.º 54/80, de 25 de março. Abolido por meio do Decreto 393/80, de 25.IX, sem nunca ter chegado a vigorar na prática.
Inobstante as muitas ocorrências de previsão de tal instituto, iremos nos ater as previsões feitas no Brasil e na Argentina.
Falemos então do Brasil que durante dez anos teve um sistema de domínio público pagante, encerrado no longínquo ano de 1983. No antigo regime da Lei n.º 5988/73, cada utilização de obra que integrasse o domínio público deveria ser autorizada pelo Conselho Nacional de Direito Autoral e as que visassem lucro teriam de pagar um valor correspondente a 50% do que corresponderia ao autor, salvo de destinasse a fins didáticos, caso em que este montante seria reduzido em 10%.
Acerca da natureza do pagamento, dada a inexistência de uma contrapartida de serviços, não havia o que se falar em taxa, configurando a natureza eminentemente tributária do instituto. Sob o véu de argumentos econômicos sofisticados e para supostos fins culturais, a busca era por rendimentos advindos do nada. Invasão de um espaço de liberdade para obter pecúnia.
Entre os argumentos favoráveis ao instituto no ordenamento brasileiro, o mais prestigiado era o não barateamento no custo das obras em razão do domínio público gratuito, que na verdade era uma ficção jurídica inoperante, tendo em vista que após o prazo de proteção conferido ao autor e sucessores, a obra passaria a fazer parte do monopólio de algumas pessoas que a exploram ilegitimamente em substituição aos mesmos. O domínio público gratuito, diziam, não beneficiava o usuário individual, mas o grande usuário, o industrial, o empresário. Prova disto seria não haver baixa de preços no teatro quando a peça encenada integrasse o domínio público gratuito, ou livros mais baratos quando reproduziram obras nas mesmas condições, pelo contrário, os clássicos eram reeditados em luxuosas versões até mais caras.
Contra o instituto, questionava-se primeiramente a autorização necessária para utilização de obra já integrante do domínio público e este ponto da doutrina era unânime: consideravam-na uma anomalia, um absurdo incompatível com a natureza do instituto, uma forma de viabilizar o dirigismo estatal e encobrir o real intuito de censura, vez que o Estado possuía o direito de selecionar o que é cultural, decidir o que ia continuar a ser divulgado.
Sobre a questão do pagamento em si, questionava-se a titularidade do CNDA, órgão estatal brasileiro, receber valor atinente a utilizações de obras de autores estrangeiros caídas em domínio público há muito tempo, como Bethooven ou até mesmo a bíblia, num disparate que Carlos Lacerda teria chamado de aberração constitucional. O Estado como sucessor dos autores que existiram no passado, de todos os tempos, de obras que foram concebidas antes de existir a proteção. Como poderia o Estado se apropriar do patrimônio cultural mundial como a Bíblia?
Felizmente o instituto foi revogado no Brasil, mesmo que a contragosto de alguns, entretanto, este estudo considera arrazoada sua extinção por tudo quanto foi exposto até agora, mas lembremos as sábias colocações do Prof. Dr. Ascensão que lembrou a necessidade de ser protegida e resguardada a cultura e não servir aos interesses vis de acúmulo de renda para o Estado. Ao invés de se prestar a sua finalidade de liberdade para a incentivo a criação cultural e científica, o domínio público remunerado reduz o espaço da livre utilização mediante tributo.
Todavia, digamos que apesar do domínio público remunerado não existir no Brasil, esse é entendimento do ECAD, por mais risível que pareça. Ao pesquisarmos por Jurisprudência atinente ao tema no STJ, o único processo encontrado foi o RESP n.º 74.736. Hilariante é que neste caso o STJ julgou improcedente uma ação de cobrança proposta pelo ECAD em face de usuário de obras musicais quando este fez uso de obra que já integrava o domínio público.
Sem pretensões de esgotar o tema ou de nos alongar demais tratemos do sistema argentino vigente, para além deste o Uruguai também mantém o domínio público remunerado na América Latina.
O domínio público pagante argentino foi criado por um Decreto-Lei emitido por um presidente que não foi eleito, num período considerado iniciado um golpe de Estado. não houve discussões parlamentares sobre as razões de oportunidade, mérito e conveniência para a instituição do domínio público pagante. Foi ordenado, nunca debatido. Na verdade, na altura em que o Decreto-Lei foi aprovado, o Parlamento não estava a realizar sessões porque tinha sido dissolvido pelo governo militar logo após o golpe. A razão para sua criação seria a inexistência de um órgão para incentivar, encorajar e proteger o patrimônio cultural argentino.
Sobre a atualidade do sistema argentino, a doutrinadora Delia Lipszyc defende a utilidade do domínio público remunerado: para assegurar a concorrência justa entre as obras do domínio público e do domínio privado, bem como na arrecadação de fundos para o fomento da atividade criativa; para manutenção de um sistema de segurança social para os autores, financiamento das artes e preservação do folclore nacional. Arremata com a conclusão de que a experiência argentina de meio século é a prova da utilidade do sistema.
Neste sentido, em apertada síntese, apresentamos as linhas gerais do sistema argentino:
Não são apresentadas estatísticas comparativas no artigo consultado sobre a efetividade do sistema, mas a autora se ocupa de encetar um corolário, o que aparenta ser seu entendimento do sistema argentino como o ideal. Aduz que o domínio público remunerado exige um pagamento correto, de base legal corretamente estruturada, necessariamente independente de autorização e de natureza fiscal; em segundo lugar o organismo público deve funcionar corretamente, devidamente constituído, bem equipado e incorruptível, de forma que os valores arrecadados devem ter suas finalidades específicas cumpridas.