A Lei 8.245/91, em seu artigo 37, enumera as modalidades de garantia passíveis de apresentação em um contrato de locação.
Por questões lógicas, eis que o diploma legal possui mais de 30(trinta) anos desde sua entrada em vigor, a legislação não acompanhou a evolução tecnológica, competindo a nós, operadores do direito, trazer novas interpretações e adequações de acordo com o cenário global.
Não nos parece nenhum contrassenso jurídico, a partir desta premissa, que as partes, de comum acordo, ajustem que um NFT figurará como garantia em um contrato de locação. Para facilitar a compreensão, NFT é a sigla para non-fungible token, que nada mais é que um token não fungível, ou seja, um ativo digital, estabelecido via blockchain (tecnologia que permite, através de um banco de dados público, descentralizado e imutável, que todas as transações sejam criadas e controladas pelos próprios usuários), que representa a identidade digital de um item. Pela sua própria definição, consiste em um bem digital único, exclusivo e que nenhuma outra pessoa terá igual.
É de bom grado registrarmos que não existe uma posição clara, seja jurisprudencial ou doutrinária, sobre a natureza jurídica de um NFT. Contudo, através de uma análise extensiva do Código Civil, podemos classificar os NFTs como bens móveis, se assim considerarmos sua natureza econômico-social, conforme art. 82do Código Civil [2].
Além disso, há muito, a doutrina já se consolidou no sentido de estabelecer que a distinção entre bens móveis e imóveis não deve levar em consideração tão somente questões inerentes à mobilidade do bem ali discutido.
O doutrinador Anderson Schreiber, brilhantemente traz a definição moderna de bens móveis, destacando que a referência à destinação econômica-social vem flexibilizar o antigo posicionamento segundo o qual a distinção entre coisas móveis e imóveis atendia simplesmente a um critério físico ou natural [3].
Seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos caracterizar a garantia locatícia representada por um NFT como uma caução correspondente a bem móvel, atraindo, portanto, a aplicação do art. 38, §1º, da Lei 8.245/91 [4]. Muito embora a Lei do Inquilinato exija o registro da caução de bens móveis em cartório de títulos e documentos, considerando a natureza do ativo digital, nada mais coerente que tal registro seja levado à blockchain.
Veja que a utilização de um NFT pode vir a ser bastante interessante para ambos os contratantes, pelos seguintes motivos:
i) as partes podem, de comum acordo, escolher o NFT que será indicado ou adquirido pelo locatário e utilizado como garantia; ii) considerando as limitações de garantias impostas pela Lei8.245/91, o NFT se mostra uma alternativa segura para o locador e um possível bom investimento para o locatário, já que o ativo pode se valorizar durante a vigência do contrato; iii) existem NFTs de qualquer valor, podendo as partes analisar aquele que melhor se encaixa de acordo com os numerários envolvidos.
Em linhas práticas, o ideal seria a elaboração de um smart contract anexo ao contrato de locação, estabelecendo as condições da garantia e formas de execução. Esses “contratos inteligentes” são, na realidade, programas que se executam de forma automática no momento em que as condições do negócio são atendidas e, ante a utilização da tecnologia blockchain, os smart contracts não podem ser alterados ou perdidos, trazendo ainda mais segurança aos contratantes. Vale apenas o alerta sobre a vulnerabilidade destes contratos, uma vez que, ante a desnecessidade de habilidades avançadas de codificação para escrever um smart contract, dependendo de como for elaborado, pode deixar os contratantes vulneráveis a ataques hacker, razão pela qual o ideal é sempre contar a o auxílio de um especialista.
Na hipótese de inadimplemento do locatário ou qualquer outro motivo que justifique a execução da garantia, se iniciará a atuação do oráculo da blockchain. O oráculo é a forma de interação de um smart contract com o mundo real, ou seja, ele é nutrido com informações externas à blockchain e pode acionar uma ação específica de acordo com as cláusulas e condições constantes no smart contract.
Em outras palavras, na hipótese de não pagamento ou infração contratual, o oráculo será acionado para que se proceda à venda do NFT, o que poderá ocorrer até mesmo em decorrência de uma decisão judicial, tudo a depender da forma estipulada pelas partes no contrato.
Podemos indicar, como forma de fomentar e garantir ainda mais segurança ao locador, que se utilize um SBT (soulbound token), que se distingue de um NFT comum em razão da impossibilidade de comercializar tal ativo digital. Dessa forma, o locador terá a tranquilidade que este token não será vendido durante a vigência do contrato. Contudo, vale a ressalva de que os SBTs são extremamente recentes e pouco regulamentados, sendo de mais fácil acesso a todos a utilização de NFTs tradicionais.
Para aqueles que possam suscitar eventual ilegalidade ou impossibilidade na utilização de NFTs como garantia locatícia, vale lembrar que a Lei de Liberdade Econômica(13.874/19) garante aos contratantes a existência de uma relação paritária e simétrica, em que poderão livremente definir a alocação de riscos aos quais se sujeitam, sendo certo que, ante ao princípio da intervenção mínima (art. 421,parágrafo único, do Código Civil), o Estado apenas poderá agir de forma excepcional e limitada.
Portanto, considerando a velocidade exponencial na qual o metaverso vem se expandindo, a escolha de um NFT como garantia locatícia se mostra interessante e em consonância com o processo de descentralização do mundo atual.
[1] Art. 37. No contrato de locação, pode olocador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia:
I - caução;
II -fiança;
III -seguro de fiança locatícia.
IV - cessãofiduciária de quotas de fundo de investimento.